Em determinado ponto de sua jornada, Emuê se encontrava caminhando numa estrada cercada por florestas. Vinha pensando em muitas coisas, no passado e no futuro, não mantinha a atenção no que estava à sua volta. Estava completamente distraído. As pessoas vivem sonhando, vivem com a cabeça em outro lugar, passam o tempo todo projetando sonhos, ilusões e problemas na mente, esquecem de viver o presente. Caso Emuê estivesse presente, não teria caído no buraco.
Foi um tombo pequeno, mas suficiente pra machucar a perna e cabeça. Ficou desacordado por alguns segundos, recobrou a consciência e se perguntou onde estava. Mal lembrou de como tinha chegado ali.
Ouviu passos. Viu o rosto de uma senhora, aparentando uns 65 anos. Ela se abaixou e estendeu a mão. Emuê pensou:
- Ela é louca? Não vai ter força pra me tirar daqui.
Mesmo assim ele segurou em suas mãos. Num único impulso a senhora tirou Emuê do buraco, com muita facilidade, sem demonstrar esforço. Uma senhora daquela não podia ter tanta força. Questionou-se se não estava sonhado, chegou a beliscar-se pra ter certeza.
- Muito obrigado, senhora. – disse Emuê
- De nada, meu filho – respondeu a senhora.
- Como a senhora conseguiu me puxar com tanta força?
- Boa alimentação e exercício físico moderado – respondeu a senhora rindo.
Emuê olhou a senhora com muita curiosidade, um certo espanto. Enquanto ele a olhava admirado, ela perguntou:
- Como foi cair neste buraco?
- Eu estava andando distraído, não vi o buraco.
- Se estivesse andando com a atenção que me olha agora, se estive consciente, não teria caído.
- Tem razão.
-Mas este é um grave problema do seu mundo, as pessoas sonham demais, vivem como sonâmbulas. Às vezes visito seu mundo. Vi algumas notícias da sua terra, de pais que esqueceram os filhos em seus veículos quente e sem ar, e os filhos morreram. Isso acontece porque dormem, dormem acordados. Se estivessem despertos, conscientes, com a atenção que você tem agora, tais tragédias não teriam acontecido.
- A senhora consegue passar sempre pro meu mundo! Como consegue?
- Eu tenho as chaves.
- Quais chaves?
- Quem sabe um dia você não descubra. Mas me diga, com o que estava distraído?
- Estava pensando em minha mãe. Vi que ela está muito triste porque um dos meus primos morreu. Eu não o conhecia, mas mamãe cuidou dele quando criança. Queria voltar por uns dias pra poder estar com ela, mas não posso e também não sei como voltar.
- Sim, você não pode voltar, por enquanto.
A senhora olhou Emuê por alguns instantes, ele tinha voltado a sonhar, voltar a por a mente em sua cidade natal, pensou nas mil coisas que poderia fazer se estivesse lá.
- Como seu primo morreu?
- Ele se matou, estava com depressão, já fazia um bom tempo. Tomava muitos remédios pra se curar, mas não adiantou.
- A tal da depressão, mais um grande problema do seu mundo. Claro que não podem acabar com essa doença com remédios. A causa dessa doença é no espírito e lá deve ser tratada.
- Como se cura a depressão sem remédio?
- Meu rapaz, preste atenção no que vou lhe dizer, vai ser útil durante a sua jornada. Todos nós somos cheios de desejos e vontades, desejamos todo tipo de coisa, mas conseguimos muito pouco dessas coisas. Algumas pessoas não conseguem reagir bem com esses desejos não realizados. Muitos querem ter dinheiro, fama, poder, mulheres e todo tipo de coisa. Quando não conseguem ser como queriam, entra num estado de frustração e tristeza. Toda depressão surge de uma frustração. Então achamos que o mundo é ruim, que somos injustiçados, que merecíamos mais do que somos e temos. Um desejo de não querer viver começa a tomar a mente, vontade de morrer. Até que um dia perdemos completamente a consciência e nos matamos. Assim é processo. A cura está no trabalho psicológico, no auto-conhecimento, na compreensão do mundo. Escute, caminhante. Entenda que tudo passa, durante a sua caminhada encontrará muitas coisas que te fascinarão, mas não se apegue a elas, pois mesmo que você as consigas, elas passarão; o ideal é não se fascinar com as coisas, a fascinação trás a inconsciência.
- Quer dizer que não devo lutar pelas coisas, nem amar as pessoas?
- Não é isso, seu tolo. Precisamos amar toda a humanidade, todos os seres e lutar pelas coisas que achamos certas e necessárias. O segredo estar em não se apegar, saber conviver com as vitórias e com as derrotas, saber que tudo chega e tudo vai, saber compreender a vida.
- Parece fazer sentido.
Emuê refletiu profundamente naquelas palavras, como se estivesse em estado de meditação. Foi interrompido mais uma vez pela senhora.
- Venha comigo. Vamos cuidar desses ferimentos, você precisa descansar.
- Por que está me ajudando?
- Porque é preciso, é minha função nesta jornada, e porque um amigo me pediu que tomasse conta de você por um tempo.
sexta-feira, 19 de março de 2010
sexta-feira, 5 de março de 2010
Emuê
Esta é uma curta passagem da longa jornada de Emuê.
Emuê é meio homem, meio pássaro, meio animal, meio peixe, meio planta, meio duende, meio fada-macho, meio matéria, meio energia, meio ar, terra, água e fogo, meio eu e meio você. Na verdade, não sei ao certo o que ele é, mas imagino um pouco disso tudo aí, inclusive, você.
Aqui, tudo gira em torno dos dois copos que foram oferecidos a Emuê – ou que servem de desculpa pra história -: um copo com suco de cacto e outro com vinho e mel. Por vezes, erramos tentando acertar e acertamos querendo errar. Emuê tomou o copo com suco de cacto e dispensou o outro que, embora não oferecido explicitamente, ele sabia que podia tomar. Se a minha má matemática não me derrubar, quatro eram as possibilidades: nada tomar, tomar o suco de cacto, tomar o vinho com mel ou tomar ambos.
Quem pos os copos foi Helena... não! Nós a chamaremos de Maria. Ou a chamaremos de Isis?!? São muitos nomes e todos querem dizer a mesma coisa, é que não costumo usar nomes originais. Pois bem! Meus pensamentos fizeram uma votação – há suspeita de compra de voto -, Maria foi o nome escolhido.
Quem pos os copos foi Maria, a bruxa Maria, ela colocou o copo com suco de cacto em cima da mesa e disse:
- Tome, Emuê, lhe fará bem.
- Tome, Emuê, lhe fará bem.
Emuê, errante caminhante, tinha sede, não gostava de cacto, mas como não queria provar o vinho com mel, por achar que lhe faria mal, tomou o suco de cacto.
Enquanto Emuê bebia, Maria dançava. Colocou uma bela música hipnotisante, uma roupa atraente e dançou, dançou e cantou. Todos os seus movimentos, cantos e olhares, apontavam pro copo de vinho com mel que estava no chão, ao seu lado. Ele observou atentamente a cada movimento, cada olhar, cada detalhe no corpo da bruxa; era linda, muito linda, sua beleza escondia seus cabelos de cobra e sua mente terrível, embora os desejos fossem sinceros.
Talvez, tomar o vinho com mel de Maria fosse a solução pra fugir do fogo que o perseguia; às vezes um mal menor cura um mal maior.
Antes de estar na casa de Maria, Emuê esteve em um condado, onde encontrou muitas bruxas. Apaixonadas por ele prepararam um grande banquete: frutas, carnes, bebidas, etc. Tinha de tudo. Queriam agradar Emuê, queriam que ele morasse ali, mas emuê não queria. Com muita insistência, aceitou ficar por algumas noites, à beira de uma fogueira. Mas elas queriam mais, bruxas querem sempre mais, queriam consumir Emuê em seus fogos.
Fizeram uma grande conjuração, um grande ritual, invocaram um demônio, dele pediram um grande poder de fogo e lançaram contra Emuê. Ele correu desesperado, aquele fogo, aquela fumaça, eram sufocantes. Alguns animais ajudaram na fuga, como pena tiveram parte da floresta queimada. As bruxas enviaram alguns soldados, mulheres guerreiras, pra capturar Emuê, que com muita luta conseguiu esvair-se, e chegou à montanha, num vilarejo, onde foi pedir abrigo na casa da Bruxa Maria. Na fuga, entre galhos queimados, lanças e flechas, Emuê pisou e matou uma formiga e um caracol, pondo fim em suas buscas e numa fábula que contaria uma história: “A formiga sonhadora e caracol corredor”. O livro jamais virá a ser escrito. Que o conto de emuê valha a pena.
As bruxas foram gananciosas, podiam tê-lo por algumas noites, mas quiseram para todo o sempre; apenas o absoluto vive para todo o sempre. Ele beberia e comeria por uns dias no condado, antes de seguir viagem, mas agora estava lá, no vilarejo, na casa de Maria, sedento e faminto.
Enquanto Maria dançava, Emuê bebia aquele suco ruim e pensava; foi difícil pensar com a bruxa e seus movimentos. Poderia tomar o vinho com mel, o néctar maravilhoso das bruxas, embriagar-se em sua música, navegar em seus desejos, no seu olhar venenoso, fazer dos seus abraços nuvens serenas num mar de tormentas; merecido presente depois de tanto sufoco que passou. E, tocado pela bruxa do vilarejo, seria rejeitado pelas bruxas do condado, o perigo seria, então, não mais fugir de seus fogos, mas escapar de suas fúrias, o que seria mais perigoso, mas menos angustiante. Maria poderia ter posto um feitiço no vinho com mel, ao invés de ficar preso no condado, ficaria preso no vilarejo, seria o fim da jornada. O feitiço poderia estar no cacto que bebia, que era de péssimo gosto, mas bebia em agradecimento a boa recepção que teve; as bruxas são cheias de artimanhas. Ele tinha fome, sabia que com o vinho com mel viria um grande pedaço de carne assada, tinha comido bem no condado, mas a perseguição o deixou com muita fome.
Emuê resistiu bem, apreciou os encantos da bruxa, mais não caiu em sua hipnose. Tentou distrair-se contando à bruxa os caminhos de sua aventura, seus desejos, idéias e objetivos. Maria também contou suas aventuras, desejos, idéias e objetivos. Emuê não tirava os olhos do vinho com mel, bebia o cacto como remédio, como forma de esquecer.
Vendo que Emuê não cederia aos seus encantos, Maria tentou uma outra estratégia. Disse a Emuê que ele precisava ir, pois não queria enfrentar as fúrias das bruxas do condado, este era um fardo só dele, além do mais, tinha seus afazeres, feitiços pra preparar, a horta pra cuidar e precisa voar em sua vassoura. Com toda delicadeza, levantou-se, abriu a porta e disse:
- Vá, Emuê, já está na hora, já descansou, já matou a cede, é hora de ir.
- Vá, Emuê, já está na hora, já descansou, já matou a cede, é hora de ir.
Mas o corpo e os olhos da bruxa diziam:
- O que espera? Beba o vinho com mel, beba tudo, saboreie cada gota, basta você pegar.
- O que espera? Beba o vinho com mel, beba tudo, saboreie cada gota, basta você pegar.
Emuê não queria ir embora, olhava atentamente os olhos da bruxa e o copo com vinho e mel, se recusou a ir embora.
Um sino tocou, era o sino da igrejinha do vilarejo, e sempre que o sino tocava algumas bruxas do condado visitavam o vilarejo, iam tratar de diversos assuntos. Dessa vez Maria falou sério, mandou Emuê ir embora, ordenou que saísse pela porta dos fundos. Não queria problemas com as bruxas do condado, até porque, Emuê não teria tempo de tomar do o copo de vinho com mel. Ele ainda ouviu o som das bruxas do condado enquanto escapava pelos fundos.
No caminho de volta à sua jornada, encontrou algumas bruxas do condado. Além do fogo, teve que enfrentar suas fúrias, agora sem ajuda dos animais, talvez dos Deuses. Livrou-se rapidamente das fúrias, mas o fogo continuou a persegui-lo. E assim teve que continuar sua jornada, enfrentando os grandes desafios e fugindo do fogo que o perseguia.
Se tivesse provado o néctar das bruxas, mesmo com todo o perigo, estaria livre o fogo das bruxas do condado. Provou o suco ruim de cacto e negou o néctar de Maria; mais um entre tantos possíveis erros durante sua jornada.
A vida é feita de escolhas, sempre há uma escolha, sempre há um caminho alternativo, e nunca sabemos aonde vamos chegar. As escolhas de Emuê o levaram até ali, a escolha pelo suco de cacto o levará a um certo lugar, que ele não sabe, eu não sei e você também não sabe.
Talvez o néctar o transformasse numa águia, num tigre, num golfinho; talvez o ajudasse bastante em sua jornada. Não sabemos como Maria preparou o néctar das bruxas, e qual seria o resultado dela.
Está é uma curta passagem da longa jornada de Emuê, que ainda não fiz, não pensei, mas que existe em algum lugar dentro de mim, dentro do universo, que talvez eu descubra um dia e passe prum livro, ou que ficará eternamente oculta.
quinta-feira, 4 de março de 2010
O rapaz da camisa listrada.
Entre os vários empecilhos à paixão estão a família, o status, a classe social, a cor, a distância, a religião, as idéias, a idade, os amigos, os inimigos e a roupa.
Ele a encontrou num dia de chuva, embaixo de uma lona, num forró, esperando a chuva passar. Rapaz atirado, sem vergonha e mulherengo; com sua inseparável bicicleta e dois copos de vinho no corpo. Menina tímida, solitária, bem arrumada. Ele puxou assunto e a conversa fluiu. Ele falava muito e ela ouvia bastante, adorou os assuntos loucos daquele rapaz louco naquele dia louco. Era uma quebra de rotina que quase todos esperam, aquele rapaz era diferente de tudo que ela conhecia. Bingo, “namoro”.
Marcaram outro encontro e se encontraram várias vezes, até que a menina notou uma coisa: ele só usava camisas listradas.
Rapaz diferente, com idéias diferentes, algumas eram geniais, interessantes, reflexivas, mas outros eram... um tanto... loucas, de verdade.
Certo dia colocou na cabeça que queria ter uma marca, algo que o lembrasse, e resolve usar apenas camisas listradas. Pensou em usar roupas indianas, mas eram um tanto caras. Seus amigos lhe chamaram de “O rapaz da camisa listrada”. Pois bem, conseguiu o que queria, agora tinha uma marca; claro, vieram as brincadeiras. Deu sorte por não ser chamado de emo, mas as combinações geraram apelidos: Preto com marrom – homem abelha, Preto com branco – irmão metralha, etc. Não ligava pras brincadeiras, era do tipo: falem bem ou falem mal, mas falem de mim.
A menina perguntou se ele tinha feito pacto, promessa ou algo do tipo, ele explicou o motivo, ela não entendeu e disse que era pra ele parar de usar listrado. No encontrou seguinte ela mandou ele escolher, ou usava listrado ou terminava o namoro, ele não levou a sério. No outro encontro ele apareceu novamente com camisa listrada, ela ficou furiosa, só então ele percebeu que ela falava sério. Ela deu o ultimato, ele disse que não pararia de usar, ela terminou o namoro.
Ela adorava o rapaz, gostava de estar com ele, conversar com ele, mas não suportou aquela esquisitice. Entre tantas esquisitices dele, ela implicou com a menos importante. Teve outros namorados, mas nunca esqueceu o rapaz da camisa listrada.
Tempos depois encontrou o rapaz por acaso, em cima da sua inseparável bicicleta. Ele vestia uma camisa azul. Ela logo perguntou o porquê ele não estava de listrado, ele disse que enjoou, assim como um dia enjoou de usar preto, e agora usava todo tipo de roupa.
Seus olhos brilharam ao ver o rapaz, se arrependeu da bobeira que fez, mas já era tarde, não havia mais lugar pros dois, percebeu que perdeu uma grande paixão por conta de um capricho.
Às vezes coisas grandes passam por conta de coisas pequenas.
quarta-feira, 3 de março de 2010
O homem-urso
Então, depois de tanta alegria – para alguns -, depois que os termômetros fingiram 40 graus nas ruas, disfarçando os 50, depois que tantos corpos fortes e bonitos – alguns carregando mente e alma vazias – se queimaram na praia, na piscina ou na laje, depois que os pássaros morrem de sede e os girassóis viraram piões, o verão mostra seu cartão de despedida. O homem-urso – meio homem, meio urso – lamenta o fim da festa. Em pouco mais de uma semana passou do calor intenso ao frio, e isso não fez bem ao homem-urso, levou um choque, a mudança repentina fez mal ao seu corpo e ao seu ânimo. O homem-urso virou urso e hibernou por três dias; sendo homem também, tinha Internet no fundo de sua caverna, manteve contato com o mundo, além de dar uma saidinha no segundo dia pra buscar seu “peixe” semanal, seu principal alimento, seu “peixe espiritual”.
Todos os outros homens se diziam felizes com o fim do calor, mas o homem-urso não se enganou, percebeu como as ruas ficaram mais vazias, todos os homens – tubarão, cachorro, gavião, etc. – estavam em casa, exceto o homem-formiga, que precisa trabalhar sempre, e o homem-pavão, que com orgulho exibia o que sobrou das suas penas da moda do último inverno; alguns poucos homens se aventuraram pelas ruas, bem poucos.
No quarto dia o frio recuou, tempo médio e céu cinza, pra ficar mais ou menos equilibrado. O homem-urso sacudiu o frio, alimentou o ânimo, sentiu fogo no espírito e voltou a viver, deixou a hibernação de lado e foi viver. Todos os homens voltaram pra rua, porque ainda resistia o sentimento de verão.
Falta de inspiração ou de capacidade, ou os dois. Tenho usado sempre o clima pra escrever.
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