sábado, 31 de julho de 2010

Vitrola

    Perdia um bom tempo entrando de cidade em cidade, de parada em parada. Em cada rodoviária, rostos parecidos, histórias parecidas. A senhora conversadeira, que estava ao seu lado, explicou que no passado as rodoviárias eram ponto de encontro nas cidades pequenas, as pessoas se arrumavam para nela se encontrarem, ver quem chegava e partia, conversar, paquerar,etc. Por isso as rodoviárias velhas eram construidas no centro das cidades, já as mais novas ficam na beirada das cidades, mais próximas das rodovias - com o tempo ficou cafona esse tipo de diversão, e as paradas próximas das rodovias facilitavam a vida e todo mundo. Ele não reclamava, gostava de ver todas aquelas ruas iguais, cidades iguais, mas cada uma com sua peculiaridade. Além do mais, adorava andar de ônibus, ficar horas olhando pela janela, os pensamentos se perdiam no horizonte, ou simplesmente, observava, com a mente vazia, como um arqueiro fixando a atenção no alvo. Viajar de ônibus cansa. Mal comparando, era uma masoquista.
    Enfim, era a sua vez. Despediu-se da senhora, pegou sua mochila no bagageiro, agradeceu ao motorista e acenou quando o ônibus partiu. Agora ele era mais um dos rostos parecidos, com uma história igual a de quase todo mundo, com elementos particulares. Era mais um rosto sendo observado por alguém - pela senhora da barraca, pelo homem da banca, pelo guarda. Cada qual com uma visão diferente daquele rosto estranho, ou indiferente à sua presença.
       Com um papel na mão, pediu informação. Seguiu com um sorriso na face. Adorava conhecer lugares novos. Olhava com atenção cada detalhe daquele lugar. A velha igreja lhe encheu os olhos. Ao entrar na rua indicada, pareceu estar sonhando. Por um momento duvidou estar no plano físico. Aquela rua longa, deserta, as copas das árvores cobriam todo o caminho, apenas alguns raios solares conseguiam penetrar, formando uma visão mágica; aquelas casas antigas, o vento passando no silêncio, só quebrado pelo som dos pássaros, os paralelepípedos e a calçada enfeitados com as folhas caidas. Era lindo demais. Um paz incrivel abraçou seu espírito, uma felicidade superior adentrou cada canto do seu corpo, da sua alma.
      A felicidade está no ser e não no ter. É uma sabedoria magnífica que o mundo perdeu. Perceber que a felicidade vem de dentro e não de fora, compreender o que há de mais valioso. O mundo como está não merece existir por muito mais tempo, a maldade já tomou os quatro cantos, os valores eternos foram invertidos, todos vivemos pelos sete pecados e não pelas sete virtudes. É preciso renovar, começar de novo.
     Andou lentamente, observando cada passo, escutando cada pássaro, sentindo o cheio das árvores. Cada casa simples era de uma beleza enorme. Alguns crianças sairam correndo de uma casa. Umas foram jogar bola, outras bolinha de gude, algumas meninas com bonecas na mão; brincavam de correr, de pular elástico, de amarelinha e muitas outras brincadeiras. Hoje as crianças brincam de matar nos vídeos game, de fazer sexo no computador.
      Chegou na casa. Toda branca com detalhes azuis, o muro baixo, muitas plantas no quintal e na varanda, uma cadeira de balanço e em cima da porta uma imagem do nosso senhor Jesus Cristo.
       Bateu palma. Apareceu uma mulher, com uma felicidade que transbordava pela aura, que tentava disfarçar com um sorriso contido. A ansiedade que precedeu o estouro de alegria tinha sido muita, e foi por entre as plantas, com seu vestido longo, cabelos trançados e mãos suadas, mãos que entregaram tudo o que ela estava sentindo. Esperou um bom tempo por aquele dia, preparou tudo com muito carinho. Às vezes os senhores do destino não facilitam o reencontro de velhas almas, mas elas persistem, por magnetismo, por karma e darma.
     Um abraço forte seguido de olhos brilhantes. Ela segurou em sua mão e foram pelo quintal, com aquelas conversas previsiveis: tudo bem?, como foi a viagem? etc.
     Um gato guardava a entrada da casa. Os cachorros protegem no físico, os gatos que protegem no astral.
     A casa era extremamente aconchegante. Os quadros de paisagens, os jarros de flores, a estante com uma tv em preto em branco - que só servia mesmo de enfeite, tinha uma colorida no quarto -, uma imagem de Santo Antônio, as cortinas brancas balançando com o vento, o sol mostrando um pouco da poeira, a mesa baixa no meio da sala, uma cortina do tipo "cigana" que dava pros outros cômodos e o mais importante de tudo: a vitrola.
    Tinham ido àquela casa pra ouvir música na vitrola, depois iriam acampar.
     Ouvir música na vitrola é diferente, tem um clima, um ar especial, como se o ruido transportasse a consciência pra algum lugar esquecido no passado, como se vivessem tudo novamente. O ruido toca na alma e tudo em volta fica mais belo. Levaram alguns discos que herdaram de seus pais e outros que conseguiram emprestado: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Novos Baianos, Alceu Valença, Cazuza, Zé Ramalho, entre outros. Ele sentou no sofá, ela colocou um disco do Cartola e foi fazer chá. Coisa boa é ouvir Cartola numa tarde de domingo, conversar sobre coisas da vida, tomar chá e ver o tempo passar. Ela veio com chá e bolo. Falaram sobre muitos assuntos, coisas sérias, coisas bestas, riram, fizeram expressãos de lamentaçãos, expressãos de esperanças, ficaram mudos, trocaram todo tipo de ideia. Uma frase do Raul Seixas descreve bem as conversas que tiveram: "dois problemas se misturam, a verdade do universo e a prestação que vai vencer".
     O tempo passou, os raios solares sumiram, a vela era a única coisa a iluminar a sala. Todas as coisas precisam ter seu equilíbrio. A vitrola tornou a tarde muito boa, mas agora era hora de ficar em silêncio. A moça ligou um abajur que tinha no canto da sala, uma luz amarela tomou toda a sala, parecia cena de cinema. Os sinos de vento, conforme o vento batia, ecoavam seus sons por toda a casa. O chá deu lugar ao vinho. Beberam um pouco, ouviram o silêncio misturado com os sinos de vento, que pareciam trazer mistérios da noite. O silêncio diz muita coisa pra quem sabe ouvir.
    Trocaram olhares profundos, que dizem muito mais que palavras.
    Já estava na hora. Precisavam pegar o último ônibus. Seria uma viagem longa, de uma semana longa e inesquecível. Momentos ímpares estavam se configurando em suas vidas. Momentos que começaram numa tarde de vitrola e chá, numa noite de silêncio e vinho, em momentos de calma.

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Aqui a música
http://www.youtube.com/watch?v=HN0_mN7fWa8
Cartola - Preciso me encontrar
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Aqui um poema sobre o texto

Uma tarde de diferente harmonia
Daqueles momentos únicos na vida
Onde os anjos têm a bela mania
De criar cena que merece ser cantada

Sons do sino de vento
Sons da velha vitrola
Luz num profundo contemplamento
Uma nostalgia que não se controla

Bolo, chá, vinho
Plantas, vento, gato
Um abajur que lá do seu cantinho
Faz do lar um belíssimo retrato

Daqueles que se conta pras futuras gerações
Narrando cidades, ruas, casas encantadas
De como um vinil costura corações
Premia a dedicação de moças prendadas

sábado, 17 de julho de 2010

Lembranças / Irmãs

Lembranças

A memória - mesmo construida - é essencial a cada povo
Lembraças são o que levamos de tempos supostamente floridos
Guardamos num pote mental de onde muitos vezes tiramos força
De estradas tortuosas extraimos belas lembraças

Eram tardes de brincadeiras infantis
"era assim todo dias de tarde
a descoberta da amizade"
Sorrisos tolos em inúmeras bobeiras

Pontualmente toda sexta
A lua sempre nos cobrava
Era urgente a reunião da nossa tribo
Sempre no mesmo lugar, só por estar

Dizia sempre: você tem a barba mas o profeta sou eu
Pregando uma peça na gente, nao previu o que viria

E noites casuais de sábados e domingos
Nas noites altas, segredos que só são contados assim
Que apenas cachorros também podiam ouvir
Fora eles, só a tribo é leal

Em cada jogo, cada piada, cada alegria
Era alegria
Assim a gente levou a vida
Até a vida nos separar

Cada qual pra seu canto
Seguindo sua maré
Encontros corriqueiros e boas conversas
Boas lembraças
Até a vida nos separar

Vai descendo com seu brincando
Com seu instrumento nas costas
É alto e veloz
A base do morro e a alavanca pra outros voos

Vai tocar em outro lugar
Vai sorrir em outro lugar
Vai andar em outro lugar

"qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar"

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Irmãs

Poema das irmãs
Vibração da energia que emana
Poderosos, fortes imãs
A fortaleza da Ananda

Na dança de muito tempo
Muita roupa, muito estilo
Até mesmo o contratempo
Fez o amor seu pupilo

Princesas e escravas
A fragilidade de Alice
Memória tudo gravas
Festa animada e chatisse

Amizade que até falha
Tropeça mas não abala
Não é fogo de palha
Tá escrito na cabala

E assim que tem que ser
Findou-se o tempo de errar
Pra que a alma possa vencer
Forjado está o tempo de amar